FISSURA
As
mãos sobre o teclado do computador portátil. Do lado esquerdo, a xícara de
café; do lado direito, o cinzeiro. De chofre, a mão direita corre direto para o
cinzeiro, mas não há cigarro. A imagem é a tradução de um hábito tão rotineiro
que se traduz em mecânica – uma cultura que peita a natureza, com o perdão do
trocadilho, eis aí a imagem do tabagismo.
A
abstinência do tabaco é conhecida como fissura. A palavra é oriunda do jargão
traumatológico e da geomorfologia, mas pense em duas etimologias que refletem a
ausência não só das substâncias químicas, como também de todo o hábito como por
exemplo, o que narrei acima.
Fissura
na sua dupla acepção: trauma e abertura. Trauma porque o cigarro é uma
representação objetal sempre presente, como um fantasma que é mais difícil de
matar do que um ser vivo. E como bem sabemos, o trauma gera a melancolia porque
o objeto antes presente, encontra-se ausente não só da consciência como também
dos hábitos pontuais do dia a dia: depois do almoço, depois do café, depois do
orgasmo, na escrita, na leitura ou na contemplação de um moribundo fim de
tarde. Abertura porque fica algo vivo a expelir da fenda um anseio que de tão
forte nos deixa prostrados, de mau humor porque a necessidade não é apenas
espectral, também é física e podemos saciá-la através de alguns trocados e uma
ida à esquina.
Você
que vive da produção e reprodução das coisas do espírito e que é fumante –
artistas, profissionais liberais, cientistas – faça um pequeno teste: pare de
fumar e vá fazer o seu trabalho. Você perceberá que há uma ausência/presença, a
fissura é um paradoxo. Seu trabalho ficará comprometido porque o que está
faltando não está nele e está, só que não há tempo hábil para o fantasma vir à
tona e, como não há tempo suficiente, o fantasma fica lá assoprando os Hamlets
que há dentro de você.
Não
há saída, ou você enche o cinzeiro novamente, ou deixa o tempo fazer o
enfadonho e laborioso trabalho que sempre fez desde o tempo que o Jardim do
Éden era pomar: sedimentar os fantasmas na consciência dos vivos.
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