FISSURA

2.2.15 Cabotino 0 Comentarios


As mãos sobre o teclado do computador portátil. Do lado esquerdo, a xícara de café; do lado direito, o cinzeiro. De chofre, a mão direita corre direto para o cinzeiro, mas não há cigarro. A imagem é a tradução de um hábito tão rotineiro que se traduz em mecânica – uma cultura que peita a natureza, com o perdão do trocadilho, eis aí a imagem do tabagismo.

A abstinência do tabaco é conhecida como fissura. A palavra é oriunda do jargão traumatológico e da geomorfologia, mas pense em duas etimologias que refletem a ausência não só das substâncias químicas, como também de todo o hábito como por exemplo, o que narrei acima.

Fissura na sua dupla acepção: trauma e abertura. Trauma porque o cigarro é uma representação objetal sempre presente, como um fantasma que é mais difícil de matar do que um ser vivo. E como bem sabemos, o trauma gera a melancolia porque o objeto antes presente, encontra-se ausente não só da consciência como também dos hábitos pontuais do dia a dia: depois do almoço, depois do café, depois do orgasmo, na escrita, na leitura ou na contemplação de um moribundo fim de tarde. Abertura porque fica algo vivo a expelir da fenda um anseio que de tão forte nos deixa prostrados, de mau humor porque a necessidade não é apenas espectral, também é física e podemos saciá-la através de alguns trocados e uma ida à esquina.

Você que vive da produção e reprodução das coisas do espírito e que é fumante – artistas, profissionais liberais, cientistas – faça um pequeno teste: pare de fumar e vá fazer o seu trabalho. Você perceberá que há uma ausência/presença, a fissura é um paradoxo. Seu trabalho ficará comprometido porque o que está faltando não está nele e está, só que não há tempo hábil para o fantasma vir à tona e, como não há tempo suficiente, o fantasma fica lá assoprando os Hamlets que há dentro de você.

Não há saída, ou você enche o cinzeiro novamente, ou deixa o tempo fazer o enfadonho e laborioso trabalho que sempre fez desde o tempo que o Jardim do Éden era pomar: sedimentar os fantasmas na consciência dos vivos.

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