CINEFILIA
A
velha rede de cinema Severiano Ribeiro já dizia em sua propaganda: “cinema é o
maior barato, vá ver”. O prazer gregário de assistir um filme na telona é um
barato às vezes nem tão barato assim. Mas, o simples fato de estar sob a
telona, o barulhinho do ar-condicionado e a sessão prestes a começar não tem
preço. E olhem que esta sensação é anterior à propaganda do cartão de crédito.
As
conveniências da sociedade pós-religião e pós-industrial às vezes suprime
certos prazeres coletivos que não fazemos ideia de sua irradiação sobre nós. Um
deles é a cinefilia. Um vício infenso à polícia e à farmacoterapia.
Baixamos
um filme da internet ou o vemos on-line nas diversas plataformas em streaming que pululam hoje pela grande rede. Assistimos estes filmes no cálido regaço do nosso lar, geralmente
sozinhos, sem a cumplicidade dos Outros “viciados” desconhecidos. Porém, não seria também “desconhecida”
para nós a recepção de uma arte produzida coletivamente cujo último libelo, a
exibição, é feita individualmente? Explico-me, não causa um certo
“estranhamento” usufruir individualmente de uma linguagem artística, o cinema, que
foi concebida coletivamente? Desconfio que esta atomização na recepção esteja
transbordando para a concepção. Cada vez mais vemos filmes destituídos de um espírito coletivo. Algo que extrapola as
teses do autor e do cinema
conceitual.
Ora,
não esqueçamos que o cinema foi criado por dois irmãos [Lumière] e foi a arte
por excelência da febre fabril da era moderna. Ou seja, uma arte eminentemente
industrial cuja produção alcançou um modelo fordista [cinema clássico
norte-americano] e, como tal, suscitou uma fruição industrial [coletiva] em
escala universal.
O
poder fulminante da cinefilia chegou às raias do absurdo em fevereiro de 1968
em Paris – dois meses antes dos acontecimentos que abalaram a história do Ocidente,
o maio de 1968. Quando A. Malraux [Ministro da Cultura de C. de Gaulle] quis
demitir H. Langlois [estimado diretor da cinemateca francesa] alegando
improbidade administrativa deste. A onda pró-Langlois criou um frisson nas ruas da capital francesa que
ecoou em Roma e Tóquio, só para citar dos exemplos, quando o diretor R.
Rossellini e A. Kurosawa, respectivamente, disseram que: “se Langlois for
demitido, retiramos nossos filmes da cinemateca”.
O
levante a favor do diretor da cinemateca francesa não deu-se apenas para além
dos Pirineus, os jovens críticos do Cahiers
du Cinéma e futuros diretores de cinema F. Truffaut, J. L. Goddard, J.
Rivette, E. Rohmer e outros, saíram em defesa de Langlois e a militância foi
tão grande que o ministro Malraux declinou sua proposta de demissão ao diretor
da cinemateca. Enfim, mais uma vez o cinema foi a antecâmara de mais um
episódio da história ocidental, desta vez ele inaugurou a era da Utopia local.
Em
suma, a cinefilia é uma cultura – uma cultura do olhar – que extrapola os
limites circunscritos ao prazer gregário de assistir a um filme e a pura
fruição estética. Ela cria um modo de ver o mundo, cria uma cinegrafia [vejamos
o caso da nouvelle vague].
Além
disso, a cinefilia nos religa [ao
quase religioso] a partir do seu culto em uma sala escura [a caverna platônica]
às nossas dimensões mais primitivas [as pinturas rupestres em Altamira e Lascaux]
e, como sabemos desde Platão, quando Polis
[cidade ou a República] tenta escorraçar Eros este se esconde em alguma parede metafísica e fica lançando
suas setinhas à toa. Numa destas, você pode ser atravessado por uma seta de
Eros e não há lugar mais propicio para isto acontecer do que na comunhão de uma
sala escura de cinema ;)
***
Foto de uma sessão no Cinema São Luiz, Recife/PE.
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