CINEFILIA

6.10.14 Cabotino 0 Comentarios




A velha rede de cinema Severiano Ribeiro já dizia em sua propaganda: “cinema é o maior barato, vá ver”. O prazer gregário de assistir um filme na telona é um barato às vezes nem tão barato assim. Mas, o simples fato de estar sob a telona, o barulhinho do ar-condicionado e a sessão prestes a começar não tem preço. E olhem que esta sensação é anterior à propaganda do cartão de crédito.

As conveniências da sociedade pós-religião e pós-industrial às vezes suprime certos prazeres coletivos que não fazemos ideia de sua irradiação sobre nós. Um deles é a cinefilia. Um vício infenso à polícia e à farmacoterapia.

Baixamos um filme da internet ou o vemos on-line nas diversas plataformas em streaming que pululam hoje pela grande rede. Assistimos estes filmes no cálido regaço do nosso lar, geralmente sozinhos, sem a cumplicidade dos Outros “viciados” desconhecidos. Porém, não seria também “desconhecida” para nós a recepção de uma arte produzida coletivamente cujo último libelo, a exibição, é feita individualmente? Explico-me, não causa um certo “estranhamento” usufruir individualmente de uma linguagem artística, o cinema, que foi concebida coletivamente? Desconfio que esta atomização na recepção esteja transbordando para a concepção. Cada vez mais vemos filmes destituídos de um espírito coletivo. Algo que extrapola as teses do autor e do cinema conceitual.

Ora, não esqueçamos que o cinema foi criado por dois irmãos [Lumière] e foi a arte por excelência da febre fabril da era moderna. Ou seja, uma arte eminentemente industrial cuja produção alcançou um modelo fordista [cinema clássico norte-americano] e, como tal, suscitou uma fruição industrial [coletiva] em escala universal.

O poder fulminante da cinefilia chegou às raias do absurdo em fevereiro de 1968 em Paris – dois meses antes dos acontecimentos que abalaram a história do Ocidente, o maio de 1968. Quando A. Malraux [Ministro da Cultura de C. de Gaulle] quis demitir H. Langlois [estimado diretor da cinemateca francesa] alegando improbidade administrativa deste. A onda pró-Langlois criou um frisson nas ruas da capital francesa que ecoou em Roma e Tóquio, só para citar dos exemplos, quando o diretor R. Rossellini e A. Kurosawa, respectivamente, disseram que: “se Langlois for demitido, retiramos nossos filmes da cinemateca”.

O levante a favor do diretor da cinemateca francesa não deu-se apenas para além dos Pirineus, os jovens críticos do Cahiers du Cinéma e futuros diretores de cinema F. Truffaut, J. L. Goddard, J. Rivette, E. Rohmer e outros, saíram em defesa de Langlois e a militância foi tão grande que o ministro Malraux declinou sua proposta de demissão ao diretor da cinemateca. Enfim, mais uma vez o cinema foi a antecâmara de mais um episódio da história ocidental, desta vez ele inaugurou a era da Utopia local.

Em suma, a cinefilia é uma cultura – uma cultura do olhar – que extrapola os limites circunscritos ao prazer gregário de assistir a um filme e a pura fruição estética. Ela cria um modo de ver o mundo, cria uma cinegrafia [vejamos o caso da nouvelle vague].

Além disso, a cinefilia nos religa [ao quase religioso] a partir do seu culto em uma sala escura [a caverna platônica] às nossas dimensões mais primitivas [as pinturas rupestres em Altamira e Lascaux] e, como sabemos desde Platão, quando Polis [cidade ou a República] tenta escorraçar Eros este se esconde em alguma parede metafísica e fica lançando suas setinhas à toa. Numa destas, você pode ser atravessado por uma seta de Eros e não há lugar mais propicio para isto acontecer do que na comunhão de uma sala escura de cinema ;) 

***
Foto de uma sessão no Cinema São Luiz, Recife/PE.



0 comentários: