Notas de verão sobre impressões de primavera [Santiago] II
"Abro mão da primavera para que continues
me olhando"
PRIMAVERA
Dizem
que Igor Stravinsky se inspirou para compor a sua, Sagração da primavera a partir de suas reminiscências na Rússia de
sua infância. Na primavera russa, o chão todo treme e se abre como uma grande
vagina para a vida que irá irromper com todo o seu esplendor após o longo
inverno.
Minha primeira experiência fora do
Brasil coincidiu de ser em uma cidade abaixo do Trópico de Capricórnio, ou
seja, na região temperada ao sul dos trópicos e, como sou de uma região onde as
estações do ano não são acentuadamente perceptíveis, o Nordeste brasileiro.
Deparei-me com uma Santiago antitética a tudo que já havia experimentado até
então em termos de condições climáticas, fria e seca.
O quente e úmido foi perpassado,
abruptamente, pelo frio e seco da capital chilena e, essa condição, atravessou
toda a minha compleição nos dias em que permanece na cidade – dois graus
Celsius é capaz de amainar qualquer sangue Tupinambá.
Confesso o que escrevi até agora não
advoga nenhum tipo de determinismo geográfico, apenas estou tentando narrar,
até onde dar para lembrar agora de volta a uma média de 25° Celsius, uma
experiência fenomenológica inédita para mim.
Encarar Santiago no mês de setembro,
onde a primavera está em transição porque a natureza sempre foi hostil a
quaisquer tipos de calendários, foi experimentar uma cidade que acorda às 9 da
manhã para trabalhar e vai até o sol se pôr, aproximadamente, às 21 horas.
Primavera em Santiago é a transição
da fleuma invernal para a sanguinidade da terra que desabrocha. A imagem desta
mudança está estampada no rosto das crianças, mais susceptíveis as intempéries.
Nelas podemos ver o alto rigor dos seus pais em lhes agasalharem, porém suas
bochechas manifestam os novos ares que estão vindo, são rosadas devido ao sol
que já começa a por suas línguas de fora para lamber as faces fáceis dos seus
pequenos enamorados.
O telúrico não sente estas mudanças
tanto quanto o estrangeiro. Andar pelas ruas do centro de Santiago, nesta época
(setembro), é topar com uma variação térmica gritante, de uma rua para outra os
termômetros podem variar até 10° Celsius. Por isso, o traje é um designador de
nacionalidades, o chileno de Santiago, neste período, raramente calça luvas,
pois suas extremidades estão habituadas com o clima, já a do brasileiro, ao
menos o nordestino, não.
Na
primavera em Santiago, há momentos em que dobramos uma rua e o calor nos toma
de salto: toma nossos agasalhos, luvas e toucas. Porém, de repete, bate uma
brisa proveniente da cumeeira nevada dos Andes e restitui, como um carabineiro,
as nossas vestes recém-assaltadas.
Santiago é uma cidade de muitos
parques, alguns erguidos sobre elevações rochosas, recebem o nome de Cerros.
Nestes espaços, há uma infinidade de casais, jovens, crianças, famílias que
aproveitam a estação de transição para ronronarem na grama e aproveitarem as
franjas de sol que começa a deitar sob o vale andino. As árvores começam a
ganhar cor, suas copas recebem uns matizes que os olhos dos trópicos não estão
habituados a encarar. Além disso, a sensação de ter um sol em que,
aparentemente, não bronzeia é algo novo para nós nordestinos.
Merece um parágrafo a relação
estabelecida pelos casais em espaço público na cidade de Santiago, a impressão
que tive sobre o chileno é que ele é sisudo (abordarei mais detidamente em
outro capítulo este tema) no geral. Porém, os enamorados nos parques são de uma
sensualidade digna de nota. Há um despudor difícil de ver entre nós a luz do
dia em logradouros públicos. Os jardins são permeados por placas: No pisar el césped, então os casais
deitam e rolam, literalmente. Há um viço no ar que se mistura com os aromas das
flores que desabrocham a partir da terra que se abre para jorrar o limo, a
seiva que se amalgama com a saliva e o sangue, em uma palavra, é a vida
almejando se consagrar na Primavera de
uma cidade austera.
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por Renato K. Silva - Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN
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