Notas de verão sobre impressões de primavera [Santiago] II

20.10.13 Foi Hoje! 0 Comentarios



"Abro mão da primavera para que continues me olhando"

PRIMAVERA

            Dizem que Igor Stravinsky se inspirou para compor a sua, Sagração da primavera a partir de suas reminiscências na Rússia de sua infância. Na primavera russa, o chão todo treme e se abre como uma grande vagina para a vida que irá irromper com todo o seu esplendor após o longo inverno.
            Minha primeira experiência fora do Brasil coincidiu de ser em uma cidade abaixo do Trópico de Capricórnio, ou seja, na região temperada ao sul dos trópicos e, como sou de uma região onde as estações do ano não são acentuadamente perceptíveis, o Nordeste brasileiro. Deparei-me com uma Santiago antitética a tudo que já havia experimentado até então em termos de condições climáticas, fria e seca.
            O quente e úmido foi perpassado, abruptamente, pelo frio e seco da capital chilena e, essa condição, atravessou toda a minha compleição nos dias em que permanece na cidade – dois graus Celsius é capaz de amainar qualquer sangue Tupinambá.
            Confesso o que escrevi até agora não advoga nenhum tipo de determinismo geográfico, apenas estou tentando narrar, até onde dar para lembrar agora de volta a uma média de 25° Celsius, uma experiência fenomenológica inédita para mim.
            Encarar Santiago no mês de setembro, onde a primavera está em transição porque a natureza sempre foi hostil a quaisquer tipos de calendários, foi experimentar uma cidade que acorda às 9 da manhã para trabalhar e vai até o sol se pôr, aproximadamente, às 21 horas.
            Primavera em Santiago é a transição da fleuma invernal para a sanguinidade da terra que desabrocha. A imagem desta mudança está estampada no rosto das crianças, mais susceptíveis as intempéries. Nelas podemos ver o alto rigor dos seus pais em lhes agasalharem, porém suas bochechas manifestam os novos ares que estão vindo, são rosadas devido ao sol que já começa a por suas línguas de fora para lamber as faces fáceis dos seus pequenos enamorados.
            O telúrico não sente estas mudanças tanto quanto o estrangeiro. Andar pelas ruas do centro de Santiago, nesta época (setembro), é topar com uma variação térmica gritante, de uma rua para outra os termômetros podem variar até 10° Celsius. Por isso, o traje é um designador de nacionalidades, o chileno de Santiago, neste período, raramente calça luvas, pois suas extremidades estão habituadas com o clima, já a do brasileiro, ao menos o nordestino, não.
Na primavera em Santiago, há momentos em que dobramos uma rua e o calor nos toma de salto: toma nossos agasalhos, luvas e toucas. Porém, de repete, bate uma brisa proveniente da cumeeira nevada dos Andes e restitui, como um carabineiro, as nossas vestes recém-assaltadas.
            Santiago é uma cidade de muitos parques, alguns erguidos sobre elevações rochosas, recebem o nome de Cerros. Nestes espaços, há uma infinidade de casais, jovens, crianças, famílias que aproveitam a estação de transição para ronronarem na grama e aproveitarem as franjas de sol que começa a deitar sob o vale andino. As árvores começam a ganhar cor, suas copas recebem uns matizes que os olhos dos trópicos não estão habituados a encarar. Além disso, a sensação de ter um sol em que, aparentemente, não bronzeia é algo novo para nós nordestinos.
            Merece um parágrafo a relação estabelecida pelos casais em espaço público na cidade de Santiago, a impressão que tive sobre o chileno é que ele é sisudo (abordarei mais detidamente em outro capítulo este tema) no geral. Porém, os enamorados nos parques são de uma sensualidade digna de nota. Há um despudor difícil de ver entre nós a luz do dia em logradouros públicos. Os jardins são permeados por placas: No pisar el césped, então os casais deitam e rolam, literalmente. Há um viço no ar que se mistura com os aromas das flores que desabrocham a partir da terra que se abre para jorrar o limo, a seiva que se amalgama com a saliva e o sangue, em uma palavra, é a vida almejando se consagrar na Primavera de uma cidade austera.
            
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por Renato K. Silva - Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN

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