Notas de verão sobre impressões de primavera [Santiago] I

19.10.13 Foi Hoje! 1 Comentarios


POVO


            O chileno é sisudo. Retiro esta conclusão, evidentemente, em relação a nós brasileiros. Sem qualquer pretensão antropológica que vise traçar um perfil cultural desta população, pretendo nestas linhas que vão seguir traçar as minhas impressões sobre este povo que habita uma estreita faixa de terra que vai dos Andes ao Pacífico, circunscrito no período em que estive no país.
            Cheguei à Santiago na segunda metade do mês de setembro onde a primavera lutava para nascer, retirada por um fórceps, após um fustigante inverno. Depois de alguns dias andando a deriva pela capital chilena, comecei a perceber uma atmosfera austera, sóbria e comedida da população. Talvez seja um clichê este, mas com o passar do tempo esta minha impressão foi sendo ressaltada a partir de minhas idas aos bares; restaurantes; lanchonetes; viagens de metrô; ônibus intermunicipais; supermercados; universidades etc.
            Aparentemente, há uma biopolítica (falarei mais detidamente na sessão sobre Política) que perpassa a população de Santiago e também a de Valparaíso (cidade que foi o berço da conspiração que capitulou o governo democraticamente eleito de Salvador Allende, em 1973) e Viña del Mar (cidade pomposa que é uma mistura de Mônaco com Miami). Além de Santiago, conheci estas outras duas cidades, localizadas a aproximadamente uma hora e meia de ônibus da capital chilena, que são banhadas pelo Pacífico e que também mantém, na sua população, aquilo que vou chamar a partir de agora de austeridade andina.
             Esta austeridade andina presente em sua música, na culinária, na bebida, nos costumes talvez seja proveniente de uma experiência das populações locais pré-colombianas, a exemplo, o povo Mapuche que resistiu às investidas espanholas por mais de 300 anos e, os mapuches que ainda hoje habitam a região centro sul do Chile e também a Argentina, em ampla medida tenha ajudado a fundir, um pouco a tempera do povo andino chileno e, boa parte do caráter do homem cisplatino. A título de exemplo, a música Mapuche é essencialmente religiosa e entrópica assim como o tango (Carlos Gardel é muito cultuado no Chile, diferente da maioria de seus compatriotas). Uma coisa curiosa é que a música brasileira que o chileno mais consome é a sóbria Bossa Nova com seus acordes dissonantes, e não a sincopado e percussiva música propagada pelo mundo como a música brasileira por excelência, o samba.
            Andar pelas ruas chilenas é uma experiência, para nós sujeitos crivados pelo “jeitinho” cordial brasileiro, sui generis. Há uma áurea “protestante” (explico, uma ascese dos corpos comparada aquela narrada por M. Weber sobre as seitas protestantes de ascetismo intramundano) que destoa diante de um corpo formado no estilhaçamento de uma postura corpórea constituída sob uma matriz católica de redenção desviante via confessionário.
            Um exemplo do que afirmei no parágrafo acima é o metrô de Santiago, diga-se de passagem, possui uma estrutura digna de primeiro mundo. Nele, percebi um dia pela manhã (horário do rush) quando o apanhei em Baquedano (estação de combinação, baldeação) lotado com destino a U.L.A (União Latino Americana, bairro industrial que congrega, além de sindicatos, boa parte das residências estudantis) um assento vazio. Estranhei de início, pensei que houvesse algum vômito no lugar ou coisa que o valha, mas para a minha surpresa, o assento era destinado a pessoas idosas, mulheres grávidas ou deficientes.
            Além deste episódio no metrô, comecei a perceber também a austeridade andina nos bares (exceção feita a La Piorrera, el palácio popular o local de Santiago onde a virtude prevarica, falarei mais dele em outro momento). Uma noite com um grupo de amigos, fui a um bar no bairro da Bela Vista, especificamente, na Calhe Pio IX (rua que congrega boa parte da boemia de Santiago). A tantas da noite após termos bebido várias cervejas e outros drinks, decidimos escapar do frio e adentramos as dependências do bar, pois estávamos do lado de fora. Uma vez dentro e instigados pelo álcool e pela música que havíamos posto na jukebox, resolvemos dançar um pouco, ato contínuo, chegou um dos garçons e disse - aquí no se puede bailar.
            A antítese chilena em relação aos brasileiros não se dá apenas na esfera climática, para nós nordestinos. Pode-se perceber também o silêncio das cidades e das pessoas consigo mesmas. Em qualquer cidade de médio ou grande porte no Brasil, o alarido das pessoas é uma tônica sempre presente. No Chile, não há a costumeira resenha futebolística discutida nos ônibus e metrôs, tampouco os carros de som espalhando seus anúncios publicitários ou os camelôs berrando em seus alto-falantes as suas bugigangas de toda a sorte. O chileno ao celular é como se estivesse fazendo uma confissão ou dizendo um segredo ao seu interlocutor, a multidão das ruas é cortada todo o tempo por um uníssono, entre as pessoas quando esbarram-se, permiso.
            Não tenho dúvidas que um dos eventos que mais me chamou atenção no Chile foi ver em pleno centro de Santiago, próximo ao palácio de La Moneda (sede do executivo chileno) um buzinaço atípico. Parei para ver esta novidade e o meu estarrecimento foi tamanho ao ver do que se tratava aquele congestionamento. Confesso, fiquei apoplético diante de tal manifestação antropológica, era um cortejo fúnebre que mais parecia uma carreata comemorativa. No cortejo havia vários carros de passeio com inúmeras pessoas dentro que excediam o limite máximo de ocupantes, dois ônibus lotados de passageiros que batiam o tempo inteiro na lateral do veículo adornado de flores e com uma placa que dizia, Adiós amigo, Xavier Constantin, en amará para siempre.
            A relação do povo andino, no geral, com a morte reflete uma inversão de papeis (como se fosse um carnaval) em comparação com nós brasileiros. Para nós pautados em um catolicismo lusitano, onde a morte é tida como oposto a vida. Já para os andinos, a morte é sinônimo de nascimento, por isso, a morte é celebrada como se fosse um segundo nascimento e não o fim da vida. E esta face que inverte, na morte, a austeridade andina em uma espécie de desregramento da economia antropológica é o diapasão de uma cultura que resiste aos imperativos homogeinizadores de um mundo cada vez mais globalizado. A morte para o andino chileno é o segundo nascimento no colo de Antu e Kuyén.
            Todo chileno é sisudo, exceto na morte.          

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por Renato K. Silva - Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN


Um comentário:

  1. http://abcblogs.abc.es/capital-america/2011/06/06/derecho-al-bailoteo-el-memorial-jefferson/

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