Vitória

20.10.13 Unknown 0 Comentarios


Chorosa, toda noite queixava-se do trabalho maçante, na enfermaria do hospital público. Ele ouvia bem, era virtude. Depois beijava, beijava com força, chegava a machucar. Ela gostava, se sentia desejada.

Três meses, seis, um ano, ano e meio. Veio a rotina, e junto a impaciência. Ela reclamava que ele não achava trabalho, queria casar, não era mais moça jovem. Ele a olhava distante, tinha pena, magra e pálida sob a luz melancólica do poste.

Mas o desentendimento só vinha para dar força ao beijo, que ocorria logo depois. Não diziam eu te amo, achavam exagero, o que se declara não se faz. Diziam apenas te quero, te quero também, e mudavam de rua ou de poste, a depender do movimento, da quantidade de pessoas.

Uma noite ela aparece desesperada, estava grávida, dois meses, meu deus, como iam fazer, roupinha, leite, fralda, depois escola, ai meu deus. Despenca no choro, estava desnorteada, salário de miséria, não sustenta um, quanto mais dois.

Ele, depois de profundo silêncio, declara, se esforçando para disfarçar a voz embargada:

- Vai ser menina, e vai se chamar Vitória.

Às perguntas imediatas, resposta não deu. Disse apenas pra ficar tranquila, de fome ninguém ia morrer. Ela já estava mais calma, as angústias foram amenizadas, conseguia até se emocionar pensando na criança.


Talvez fosse isso que buscasse nele: tranquilidade. Dentro de pouco tempo, também afiançava que ia ser menina. E quem há de duvidar? Pressentimento de mãe não falha, menos ainda de pai e mãe juntos.

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Notas de verão sobre impressões de primavera [Santiago] II

20.10.13 Foi Hoje! 0 Comentarios



"Abro mão da primavera para que continues me olhando"

PRIMAVERA

            Dizem que Igor Stravinsky se inspirou para compor a sua, Sagração da primavera a partir de suas reminiscências na Rússia de sua infância. Na primavera russa, o chão todo treme e se abre como uma grande vagina para a vida que irá irromper com todo o seu esplendor após o longo inverno.
            Minha primeira experiência fora do Brasil coincidiu de ser em uma cidade abaixo do Trópico de Capricórnio, ou seja, na região temperada ao sul dos trópicos e, como sou de uma região onde as estações do ano não são acentuadamente perceptíveis, o Nordeste brasileiro. Deparei-me com uma Santiago antitética a tudo que já havia experimentado até então em termos de condições climáticas, fria e seca.
            O quente e úmido foi perpassado, abruptamente, pelo frio e seco da capital chilena e, essa condição, atravessou toda a minha compleição nos dias em que permanece na cidade – dois graus Celsius é capaz de amainar qualquer sangue Tupinambá.
            Confesso o que escrevi até agora não advoga nenhum tipo de determinismo geográfico, apenas estou tentando narrar, até onde dar para lembrar agora de volta a uma média de 25° Celsius, uma experiência fenomenológica inédita para mim.
            Encarar Santiago no mês de setembro, onde a primavera está em transição porque a natureza sempre foi hostil a quaisquer tipos de calendários, foi experimentar uma cidade que acorda às 9 da manhã para trabalhar e vai até o sol se pôr, aproximadamente, às 21 horas.
            Primavera em Santiago é a transição da fleuma invernal para a sanguinidade da terra que desabrocha. A imagem desta mudança está estampada no rosto das crianças, mais susceptíveis as intempéries. Nelas podemos ver o alto rigor dos seus pais em lhes agasalharem, porém suas bochechas manifestam os novos ares que estão vindo, são rosadas devido ao sol que já começa a por suas línguas de fora para lamber as faces fáceis dos seus pequenos enamorados.
            O telúrico não sente estas mudanças tanto quanto o estrangeiro. Andar pelas ruas do centro de Santiago, nesta época (setembro), é topar com uma variação térmica gritante, de uma rua para outra os termômetros podem variar até 10° Celsius. Por isso, o traje é um designador de nacionalidades, o chileno de Santiago, neste período, raramente calça luvas, pois suas extremidades estão habituadas com o clima, já a do brasileiro, ao menos o nordestino, não.
Na primavera em Santiago, há momentos em que dobramos uma rua e o calor nos toma de salto: toma nossos agasalhos, luvas e toucas. Porém, de repete, bate uma brisa proveniente da cumeeira nevada dos Andes e restitui, como um carabineiro, as nossas vestes recém-assaltadas.
            Santiago é uma cidade de muitos parques, alguns erguidos sobre elevações rochosas, recebem o nome de Cerros. Nestes espaços, há uma infinidade de casais, jovens, crianças, famílias que aproveitam a estação de transição para ronronarem na grama e aproveitarem as franjas de sol que começa a deitar sob o vale andino. As árvores começam a ganhar cor, suas copas recebem uns matizes que os olhos dos trópicos não estão habituados a encarar. Além disso, a sensação de ter um sol em que, aparentemente, não bronzeia é algo novo para nós nordestinos.
            Merece um parágrafo a relação estabelecida pelos casais em espaço público na cidade de Santiago, a impressão que tive sobre o chileno é que ele é sisudo (abordarei mais detidamente em outro capítulo este tema) no geral. Porém, os enamorados nos parques são de uma sensualidade digna de nota. Há um despudor difícil de ver entre nós a luz do dia em logradouros públicos. Os jardins são permeados por placas: No pisar el césped, então os casais deitam e rolam, literalmente. Há um viço no ar que se mistura com os aromas das flores que desabrocham a partir da terra que se abre para jorrar o limo, a seiva que se amalgama com a saliva e o sangue, em uma palavra, é a vida almejando se consagrar na Primavera de uma cidade austera.
            
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por Renato K. Silva - Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN

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Notas de verão sobre impressões de primavera [Santiago] I

19.10.13 Foi Hoje! 1 Comentarios


POVO


            O chileno é sisudo. Retiro esta conclusão, evidentemente, em relação a nós brasileiros. Sem qualquer pretensão antropológica que vise traçar um perfil cultural desta população, pretendo nestas linhas que vão seguir traçar as minhas impressões sobre este povo que habita uma estreita faixa de terra que vai dos Andes ao Pacífico, circunscrito no período em que estive no país.
            Cheguei à Santiago na segunda metade do mês de setembro onde a primavera lutava para nascer, retirada por um fórceps, após um fustigante inverno. Depois de alguns dias andando a deriva pela capital chilena, comecei a perceber uma atmosfera austera, sóbria e comedida da população. Talvez seja um clichê este, mas com o passar do tempo esta minha impressão foi sendo ressaltada a partir de minhas idas aos bares; restaurantes; lanchonetes; viagens de metrô; ônibus intermunicipais; supermercados; universidades etc.
            Aparentemente, há uma biopolítica (falarei mais detidamente na sessão sobre Política) que perpassa a população de Santiago e também a de Valparaíso (cidade que foi o berço da conspiração que capitulou o governo democraticamente eleito de Salvador Allende, em 1973) e Viña del Mar (cidade pomposa que é uma mistura de Mônaco com Miami). Além de Santiago, conheci estas outras duas cidades, localizadas a aproximadamente uma hora e meia de ônibus da capital chilena, que são banhadas pelo Pacífico e que também mantém, na sua população, aquilo que vou chamar a partir de agora de austeridade andina.
             Esta austeridade andina presente em sua música, na culinária, na bebida, nos costumes talvez seja proveniente de uma experiência das populações locais pré-colombianas, a exemplo, o povo Mapuche que resistiu às investidas espanholas por mais de 300 anos e, os mapuches que ainda hoje habitam a região centro sul do Chile e também a Argentina, em ampla medida tenha ajudado a fundir, um pouco a tempera do povo andino chileno e, boa parte do caráter do homem cisplatino. A título de exemplo, a música Mapuche é essencialmente religiosa e entrópica assim como o tango (Carlos Gardel é muito cultuado no Chile, diferente da maioria de seus compatriotas). Uma coisa curiosa é que a música brasileira que o chileno mais consome é a sóbria Bossa Nova com seus acordes dissonantes, e não a sincopado e percussiva música propagada pelo mundo como a música brasileira por excelência, o samba.
            Andar pelas ruas chilenas é uma experiência, para nós sujeitos crivados pelo “jeitinho” cordial brasileiro, sui generis. Há uma áurea “protestante” (explico, uma ascese dos corpos comparada aquela narrada por M. Weber sobre as seitas protestantes de ascetismo intramundano) que destoa diante de um corpo formado no estilhaçamento de uma postura corpórea constituída sob uma matriz católica de redenção desviante via confessionário.
            Um exemplo do que afirmei no parágrafo acima é o metrô de Santiago, diga-se de passagem, possui uma estrutura digna de primeiro mundo. Nele, percebi um dia pela manhã (horário do rush) quando o apanhei em Baquedano (estação de combinação, baldeação) lotado com destino a U.L.A (União Latino Americana, bairro industrial que congrega, além de sindicatos, boa parte das residências estudantis) um assento vazio. Estranhei de início, pensei que houvesse algum vômito no lugar ou coisa que o valha, mas para a minha surpresa, o assento era destinado a pessoas idosas, mulheres grávidas ou deficientes.
            Além deste episódio no metrô, comecei a perceber também a austeridade andina nos bares (exceção feita a La Piorrera, el palácio popular o local de Santiago onde a virtude prevarica, falarei mais dele em outro momento). Uma noite com um grupo de amigos, fui a um bar no bairro da Bela Vista, especificamente, na Calhe Pio IX (rua que congrega boa parte da boemia de Santiago). A tantas da noite após termos bebido várias cervejas e outros drinks, decidimos escapar do frio e adentramos as dependências do bar, pois estávamos do lado de fora. Uma vez dentro e instigados pelo álcool e pela música que havíamos posto na jukebox, resolvemos dançar um pouco, ato contínuo, chegou um dos garçons e disse - aquí no se puede bailar.
            A antítese chilena em relação aos brasileiros não se dá apenas na esfera climática, para nós nordestinos. Pode-se perceber também o silêncio das cidades e das pessoas consigo mesmas. Em qualquer cidade de médio ou grande porte no Brasil, o alarido das pessoas é uma tônica sempre presente. No Chile, não há a costumeira resenha futebolística discutida nos ônibus e metrôs, tampouco os carros de som espalhando seus anúncios publicitários ou os camelôs berrando em seus alto-falantes as suas bugigangas de toda a sorte. O chileno ao celular é como se estivesse fazendo uma confissão ou dizendo um segredo ao seu interlocutor, a multidão das ruas é cortada todo o tempo por um uníssono, entre as pessoas quando esbarram-se, permiso.
            Não tenho dúvidas que um dos eventos que mais me chamou atenção no Chile foi ver em pleno centro de Santiago, próximo ao palácio de La Moneda (sede do executivo chileno) um buzinaço atípico. Parei para ver esta novidade e o meu estarrecimento foi tamanho ao ver do que se tratava aquele congestionamento. Confesso, fiquei apoplético diante de tal manifestação antropológica, era um cortejo fúnebre que mais parecia uma carreata comemorativa. No cortejo havia vários carros de passeio com inúmeras pessoas dentro que excediam o limite máximo de ocupantes, dois ônibus lotados de passageiros que batiam o tempo inteiro na lateral do veículo adornado de flores e com uma placa que dizia, Adiós amigo, Xavier Constantin, en amará para siempre.
            A relação do povo andino, no geral, com a morte reflete uma inversão de papeis (como se fosse um carnaval) em comparação com nós brasileiros. Para nós pautados em um catolicismo lusitano, onde a morte é tida como oposto a vida. Já para os andinos, a morte é sinônimo de nascimento, por isso, a morte é celebrada como se fosse um segundo nascimento e não o fim da vida. E esta face que inverte, na morte, a austeridade andina em uma espécie de desregramento da economia antropológica é o diapasão de uma cultura que resiste aos imperativos homogeinizadores de um mundo cada vez mais globalizado. A morte para o andino chileno é o segundo nascimento no colo de Antu e Kuyén.
            Todo chileno é sisudo, exceto na morte.          

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por Renato K. Silva - Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN


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DEIXA EM PAZ O MEU MISTÉRIO

16.10.13 Foi Hoje! 0 Comentarios


Sabe lá o que um mortal que dedica sua vida à educação inventou de pensar no dia 15 de outubro? Um mistério. É isso mesmo, esse mortal pensou em mistério, aquilo que pra muita gente é transcendental, pra outros é sagrado, pra outros ainda é fonte de renda, afinal sob a capa misteriosa muitos pregadores angariam mais cifrões pro seu “dizimado” salário, pra mim mistério é algo muito humano, muito próximo e até essencial.
Fico de cá falando em mistério porque todo mundo vai mandando mensagem de “parabéns professor...” e frases com esse mesmo fim, mas o que faz esse devotado a Nancy pensar sobre sua vida laboral na sala de aula é o mistério. Sempre me deixou incomodado os descaminhos que essa palavra tomou, pra muitos o mistério é sinônimo de segredo, oculto, velado. Na verdade mistério (MÍSTICO) é aquilo que é intimo aquilo que é próximo e nos conecta com o outro.  Fico vidrado nisso: mistério é a capacidade de estar em intimidade com o outro.  A relação de um casal é algo misterioso, a parceria de pais, mães e filhos é misteriosa, a cama e seu tablado para dois ou mais corpos se encontrarem é misteriosa, a cerveja que junta à galera depois da aula ou do trabalho é mistério puro meu amigo.
Tu já deves saber onde quero chegar, o que me liga a escola é o mistério que me coloca inteiro nesse espaço. Há uma intimidade entre o que faço com quem faço: professores, estudantes, suas vidas e a alegria de encontrar algumas trilhas com a rapaziada e dar fé de que estamos num processo de formação... Contribuir com a formação de outro humano é intimo por isso mistério.
O cansaço por nunca retroceder no passo também é misterioso, é intimo a todos e todas, nós professores e professoras. É o debulhar de nosso trigo.
Com efeito, olha a gota que salta... Será que deixa em paz teu coração? Não me anima ser tratado como caso de polícia e figurar entre as chacotas de quem sabe que a vida nunca será tranquila pra quem tem por ofício o piloto e a lousa.  Não quero nem me perder falando do Eduardo Campos que agora acredita ter uma REDE preguiçosa pra deitar. O Presidenciável das Princesas não sabe o que é piso nem salário. Certamente quem vive a espezinhar trabalhadores e trabalhadoras da educação está acabando com seus sonhos, sua saúde, sua capacidade física, intelectual e financeira de avançar em sua formação permanente e isso já é uma desgraça, no entanto, desconfio daqueles que vivem do martírio diário da professorinha, acredito que estes já sabem que não roubam só as garantias trabalhistas do professor, o pior está à frente, descaradamente começam a minar em nós o mistério-intimidade que ergue nossa prática e aí não quero mais aceitar nada! Deixa em paz meu coração, por favor! Já sei que essa tortura não tem nada haver com desatenção e por isso, em defesa do meu mistério, eu decreto ESTADO DE GOTA D’ÁGUA no meu ofício e digo logo: nem venha! Porque dentro de mim já armei explosivos e só meu mistério há de deixar em paz meu coração.
                                                                                              
Por: Taumaturgo de Nancy

        
                                                                                     






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Joga tua bola

4.10.13 Unknown 0 Comentarios


Cada gota do que escrevo é cansaço. É ácido feito com intuito de corroer os olhos e a preguiça de quem lê. Não me tome aqui por desmedido ou por muganguento estilista das letras apagadas, ou por um metódico simplesmente. A real é que, vira e mexe, sou escrevinhador de quadro negro, avulso e envolto em excitações, logo, precocemente, esporro no papel... ah!!!  Os mais lúcidos logo me advertem, os ajuizados me aconselham, mas quando dou por mim já estou todo gozado, foi mal!  
Mas, também sou um filho bastardo do meu tempo, por isso, daquilo que gosto me lambuzo, uso com calma, aprecio e, fazendo uso do que hoje em dia anda em desuso, por vezes capricho no preparo e não escancaro minhas palavras ou meu recado com um carrinho quebrando a perna do beque central no começa da partida. Não. Sou jogador versátil, sei também levantar a cabeça, pensar ao lançar a bola, calcular, porque, como diria o filósofo, “o jogo só acaba quando termina”. Ou seja, joga teu futebol, boy! e deixa o galego jogar o dele.  

Por: Coruja Felixberto Carvalho

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