as minhas mortes

4.2.13 Joarez 2 Comentarios


                                                                                           E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,E que o poente é belo e é bela a noite que fica.Assim é e assim seja. (PESSOA, Fernando)


Parou em cima da ponte, numa hora de pouco movimento, para olhar o rio. Aproveitou e, também, puxou do king size existencial o mais reflexivo cigarro de que já se teve notícia. Pôs-se a pensar na vida. Ou melhor, na morte. 

Olhando para o canto direito superior, lá longe, onde a vista alcançava, enxergou um barranco enorme, repleto de mato e pensou no menino que morreu, ali, empinando pipa. O menino que ele foi, e que foi morto pela vida, pelas impossibilidades, pelas limitações. Já, agora, de barba e bigode na cara, não se imaginava jogando uma pipa ao ar, perdendo a tarde leve, numa brincadeira leve. Mas muito antes disso, quando a voz começava a engrossar, já lhe cobravam maturidade, já tentavam matar o menino. E conseguiram, foi meu primeiro sepultamento.

Atrás do barranco, no lugar onde deveria estar o "Poeirão", maior campo de futebol das redondezas, agora se erguia um condomínio da Tenda. Chegaram, e, de uma hora pra outra, derrubaram as traves do Poeirão; retiram os troncos que serviam de banco para os reservas ou de assento para os espectadores; planaram o terreno; puseram de pé mais um prédio. Ninguém sabe como foi isso, nem em que termos se deu a escusa negociação com a prefeitura. Eu morri aos poucos, enquanto o edifício se erguia, imponente. Cada tijolo sedimentado naquela construção era um uma gota de sangue que eu perdia, até morrer, lentamente, morrer.

Mas não estavam contentes - pensei, até, que houvessem armado um complô contra mim. Não demorou para que, na direção oposta ao campo de futebol, apontando para o sul, levantassem outro prédio. Ele ficava exatamente na frente da mata mais grandiosa e bela que minha vida já viu. A mata que eu via todos os dias e que fazia parte da minha geografia sentimental. Que golpe duro: me roubaram a visão da mata, me roubaram o horizonte, me roubaram um pouca da minha pouca esperança. Chorei durante dias, silenciosamente, a perda de perspectiva que me impuseram. Depois, despenquei no chão morto, morto demais.

Ingênuo, como um garoto interiorano, pensei que isto fosse o ápice. Quanto engano: era apenas o começo. Depois disso, o bonde maluco do progresso pululou por todos os lados. Os edifícios eram tão rapidamente erguidos, que aos meus olhos lentos, pareciam que brotavam do chão. E eu passei a morrer cada vez mais frequentemente: morri quando morreu Seu Chico, e nunca mais sua carroça azul voltou a ser vista; morri quando proibiram as festas de São João no quartel do Exército; morri quando transformaram a escola em restaurante; morri quando morreram os meninos como eu e ninguém, nunca mais, pôs trave de sandálias no meio da rua; morri quando as distâncias físicas se tornaram maiores, e as fraternas, intransponíveis.

O cigarro já está acabando. Não vou jogar a bituca no rio para não matá-lo ainda mais. Ele que, há tanto tempo, está tão morto. Tão morto que nem reparou que só esse mês eu morri mais duas vezes.



2 comentários:

  1. Impossível ler essa crônica e não lembrar de meu lugar. E as festas juninas no quartel? Minha nossa! Era o lugar certo de arrumar companhia boa; as meninas todas cheirosas e com roupa de domingo. Quantas vezes, por minha imensa timidez (juvenil!?), deixei de ir nessas festas... preferia a solidão de um violão, de um bar, e de vinho barato com os amigos. Nessa alturas, era altura pouca mesmo, Joarez ! A periferia ainda não estava tomada, do jeito que tá agora, pela especulação imobiliária. Cabotino nos falou certa vez, eu um do seus "o inconsciente do olhar" de um rapaz que grita pela janela do ônibus, ao ver um jogo num desses "poeirões" da vida um,"que gol caralho". Poderia dizer que sinto "um cheiro" ao ler essa tua crônica, Joarez. Um cheiro de terra, de chuva no chão, de lama e de suor... Essa tua crônica também é um gol do caralho! E "as mortes", também se sucedem no peito desse que vos fala. Abraço.

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  2. To achando a aura desse blog um tanto quanto densa. densa como uma cusparada de sangue de um tuberculoso. Madrazzo.

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