Experimentos cronísticos [parte 2]. Epitáfio Brasil, vulgo, brasileirinho! (1980 - 2011)
“O que te desejo é ouro, é prata, vive por cima das cabeças,
paira os homens e as plantas. Desejo-te chuva”. (Pássaro bege)
A chuva! Lisa e escorregadia, como um tombo numa sala bem lustrada se meteu no silêncio da casa de seu Epitáfio, soldado da polícia militar, com um pinga-pinga ensurdecedor na cozinha numa panela velha. Seu Epitáfio não gostava de pingos nas panelas, porque o lembrava música. Ele odiava música. Era um homem bruto, não muito “dado” à coisas metafísicas como as melodias. Era um chato de galocha. Um jovem ranzinza.
Mas, guardava uma paixão secreta e escondida à sete chaves, algo que o emocionava... adorava fazer um fezinha no bicho. Na banca de bicho, trocava algumas ideias com o bicheiro, seu Hélio, sobre subversão, violência e sobre as matérias dos tablóides matinais cheios de sangue e medo, de todas as manhãs. Só ligava o rádio para conferir a extração federal do bicho nas quartas, religiosamente às 19:00hs.
Malandro, que só ele, percebeu que o jogo do bicho não era assim tão ruim quanto pensava. E sempre jogava um mesmo terno de dezena: 14, 56, 65. Era ambicioso. Gostava de jogar pouco e ganhar muito. Dizia que o convívio militar tinha ensinado a ele esses hábitos milimétricos.
A história dos números:
* Quando usou uma arma pela primeira vez tinha 14 anos de idade. Achou um resolver na gaveta do tio e desde então, sentiu o poder que poderia obter com um troço daqueles nas mãos.
* 56, era o número de sua casa financiada com suor, lágrimas e alguns tiros.
* O motivo de ter escolhido o número 65 foi um mistério jamais revelado. Mas suspeitava-se que seu Epitáfio era um homem “dado” a algumas superstições um “típico brasileirinho”.
Às 19:00hs do dia 06 de abril 2011, sintonizou a rádio Alvorada e ouviu a voz aveludada do cronista proferir: “E as milhares são”:
1614
1256
6565
1000
1968
Procurou eufórico no bolso o canhoto, o pule premiado... e estava tudo certo, não restavam dúvidas, tinha ganhado no terno. Dirigiu-se a banca pra resgatar sua pequena bolada, R$ 12.000 e tomou um sorvete de tamarindo no parque central. Ainda na praça orou aos céus e a chuva molhou, desonesta, seu rosto e sua alma ranzinza. De rosto e alma lavada, Epitáfio, ligou pra seu Hélio e pediu que jogasse os mesmo números 14, 56, 65 para a próxima quarta. Depois do telefonema, Epitáfio, foi atingido por um raio e assim Deus matou mais um brasileirinho.
No dia 13 de abril de 2011 seu Hélio empurrou os R$ 12,000 de Seu Epitáfio no bolso e desde então, evita os banhos de chuva.
*Extraído do arquivo: Experimentos cronísticos [parte 2].
Por: Pássaro Bege
Tragicõmico... Epitáfio forrando a cama pra Seu Hélio deitar.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
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ResponderExcluirBanhos de chuva podem ser muito perigosos. Mas a ansiedade também. Raios podem cair em qualquer chuva, em qualquer lugar. A euforia só apareceu naquele momento específico. Não fosse ela, a euforia, talvez Seu Epitáfio não tivesse saído de casa, nem tomado chuva, e, consequentemente, não tivesse morrido.
ResponderExcluirO que matou Epitáfio: a euforia ou a chuva?
Mas, no final das contas, de que importa? Nesse momento, a única imagem que se tem é a de Seu Epitáfio, momentos antes de sair e encarar a chuva que lhe tiraria a vida, forrando a sua vasta e confortável cama. A cama que Seu Hélio iria deitar.
Em tempo: esta crônica ficou foda, uma das melhores que já li no 'Foihj'.
ResponderExcluirAbçs, Rico!
KKKKKKKKKK Muito boa meu caro pássaro! E aí seu epitácio vira personagem semanal ou não vira?
ResponderExcluirEpitáfio meu caro castanha!! Personagem semanal e de todos os dias !
ResponderExcluirPassaro bege
Epitáfio para Sr. Epitáfio
ResponderExcluirAqui jaz um homem que não desejou
pompas fúnebres, apenas três dezenas
inscritas em sua lápide: 14,56,65.
Quando a vida se faz em números a
pedra tumular é tão fria quanto a
quem vai lá dentro.
PS: Belo texto Pássaro Bege, parabéns!
Renato