Ao Fundo

12.4.11 Calango Albino 5 Comentarios


Contava as horas pra chegar o dia e quando o dia finalmente chagava, já estava contando novas horas para um novo dia. Esse processo se repetia à exaustão. Não fazia sentindo algum se fosse analisar minuciosamente toda aquela rotina, mas, analisar minuciosamente qualquer coisa era um luxo ao qual não podia se dar. E assim foram-se passando as horas e os dias até que não importava mais que horas eram ou que dia fosse. Dormir, comer, fazer qualquer coisa rotineira perdeu totalmente o significado. Era uma vida seca, num mundo seco. Que secura! Que sede! Não adiantava beber água, não adiantava se banhar.

Foi aumentando gradativamente o consumo de água. Já era visto pelos seus pares como um grande “gastador de água”. Por que você precisa de tanta água? Não tem consciência que isso é um bem precioso e que você está desperdiçando à toa? Não conseguia mais dar ouvidos àquelas indagações. Chegou, em uma época, a pensar muito à respeito, mas rapidamente esses pensamentos não lhe vinham mais à cabeça. Seu organismo foi gradativamente se adaptando a consumir mais e mais água. A quantidade era absurda para qualquer ser humano dito normal. Uma vez chegou a tomar 20 litros d’água num único dia; a medida de um garrafão d’água mineral!

Decidiu por viajar ao interior, respirar novos ares, visitar parentes distantes, os quais já não lembrava das feições. A viagem foi longa. A estrada ficava devendo em qualidade e o tempo do percurso terminava por se estender mais, por conta disso. Pensando bem, até que não era tão ruim. Sobrava mais tempo para apreciar a paisagem de beira de estrada, tão diferente do cenário cinzento ao qual estava acostumado. Cinzento e seco.

Na beira da estrada, sentia a umidade, no orvalho da noite, no mato que crescia... Desceu na rodoviária nas primeiras horas de sol e procurou pelo açude que tinha tomado banho quando criança. Ao chegar na beira do açude se toucou que a beira tinha “andado”. Já não tinha o mesmo tamanho de circunferência aquele velho açude carcomido pela seca. De novo a secura. Banhou-se nas águas do açude procurando a sensação da infância. O efeito foi contrário ao que esperava. Não se refrescou, não obteve saciedade.

Voltou à rodoviária, comprou uma passagem de volta, nem sequer chegou a visitar seus parentes. Subiu no ônibus sentindo a secura aumentar. No caminho de volta a sensação piorou, já não adiantava beber água. Uma ideia maluca passou pela cabeça e foi virando fixação. Ideia fixa. Paranoia. Será!? Não sobreviveria se fizesse o que estava pensando. No entanto, sentia-se impelido a fazê-lo. E o fez.

Ao chegar à cidade litorânea onde morava buscou o mar. Foi à paria, tirou os sapatos, deixou as roupas caírem, ficou nu, causando alvoroço nos banhistas ao redor. Entrou no mar e caminhou até onde não podia mais e teve que mergulhar para continuar. A secura foi cessando aos poucos, até não mais existir. Agora sabia que teria que escolher entre viver na secura ou morrer para saciá-la, precisava respirar e tinha que voltar à superfície. Optou por não voltar e foi morar no fundo do mar.

5 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Porra, Kleiber, esse conto ficou belíssimo! Camus, na literatura, dizia: "O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia."

    Chico, na música, falava assim:" A vida é um dilema/ nem sempre vale a pena."

    Abstendo-me de fazer qualquer juízo de valor, contento-me em dizer que a escolha do nosso 'camarada' foi belíssima.

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  3. porra! pancada!
    decisão é decisão!


    Rico Santana

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  4. "Num mundo que se faz deserto, temos sede de encontrar um amigo" Antoine de Saint-Exupéry

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  5. Grande Kleiber!!! Ta bem dentro da ideia que a gente tava trocando: Realismo mágico pra lá de louco.
    É nós

    Castanha

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