O som ao redor da polêmica na Fundaj
Por Renato K. Silva
Muito se tem discutido sobre a punição que a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) deu para a dupla de diretores Cláudio Assis e Lírio Ferreira, protagonistas de ignóbeis expressões de preconceito por ocasião do debate de lançamento do filme, Que horas ela volta?, da
diretora Anna Muylaert, na noite do dia 29 de agosto, no Cinema do
Museu, em Casa Forte. A decisão da Fundaj consiste em suspender durante
um ano, em suas dependências, qualquer trabalho envolvendo a dupla de
realizadores acima mencionados.
Após a decisão da Fundaj, instaurou-se um
debate bastante polarizado sobre o tamanho da medida. Uns dizendo que
fora justa; outros, alegando exagero – inclusive a diretora Anna
Muylaert, principal alvo do machismo da dupla de diretores. De repente o
clima, em linhas gerais, quedou-se nos polos: pedagogia x censura. Para
além disso, a decisão da Fundaj também manifesta um dado que há algum
tempo vinha em latência: o confronto geracional entre os realizadores de
cinema em Pernambuco.
Há hoje duas gerações de realizadores
operando em Pernambuco. A primeira seria a dos “curta-metragistas”, ou
Geração da Retomada, pois surgiram no período da Retomada do cinema em
Pernambuco, com o filme Baile perfumado (Lírio Ferreira e Paulo
Caldas, 1997). Esta geração conta com nomes como Adelina Pontual,
Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Hilton Lacerda, Paulo Caldas e Marcelo
Gomes. A segunda geração seria a dos cineastas que sobretudo
galvanizaram cineclubes em Recife na virada da década de 1990 para 2000.
Entre eles, temos nomes como Kleber Mendonça Filho, Gabriel Mascaro,
Daniel Aragão, Marcelo Pedroso, Marcelo Lordello, Tião, Leonardo Lacca,
Daniel Bandeira, entre outros. Chamaremos, a partir de agora, de geração
da pós-Retomada.
Em todos os mercados de bens simbólicos há
disputas pela hegemonia pública das interpretações da realidade local.
Essas querelas são inerentes a quaisquer setores onde haja abertura
política, circulação de informação e rotatividade dos locais
deliberativos para a gestão cultural.
B. Abrahão trazendo as novidades que vêm de fora. |
Johann e Ranulpho em Cinema, aspirinas e urubus |
O ponto de inflexão à temática sertaneja
ocorre nos filmes de Cláudio Assis. Em sua grande maioria, retratam o
lúmpen urbano do Recife. Mantém, por outro lado, a marca do que eu chamo
de exercício de alteridade, ao buscar retratar, através dos
personagens, modos de vida diferentes da sua própria trajetória
biográfica.
Já a geração da pós-Retomada, na maioria
dos seus filmes, padece desse foco em exercícios de alteridade. O sertão
sai de cena, literalmente, e entra a vida da classe média recifense,
seja na crítica à desenfreada especulação imobiliária ou ao modo de vida
“enjaulado” da capital pernambucana. Em outras palavras, essa geração
começa a filmar o seu próprio modo de vida.
Outdoor do Cine-PE - "Menos glamour e mais cinema" |
Fora dos filmes, no contexto dos eventos, a luta deu sinais na queda de braço entre o Cine-PE – festival que surgiu de roldão com a geração da Retomada – e o Janela Internacional de Cinema do Recife.
Diria que a luta entre os dois festivais
pelo lugar de protagonismo no circuito pernambucano deu-se de maneira
não deliberada. Ou seja, o Cine-PE perdeu sua hegemonia mais por sua
própria incapacidade de renovar a sua linha curatorial do que por
qualquer outra coisa. Já o Janela aproveitou a lacuna aberta e tornou-se
o evento mais importante do gênero no estado.
Folder do VII Janela - ruínas do Ed. Caiçara, símbolo da resistência contra a especulação imobiliária. |
Com isso, não podemos perder de horizonte que a geração da Retomada perdeu capital simbólico e status com o declínio do Cine-PE e a geração da pós-Retomada ganhou mais visibilidade com o Janela.
A propósito, não devemos esquecer que o
Janela é organizado por Kleber Mendonça Filho, cineasta comprometido com
os ideais estéticos da pós-Retomada e um dos responsáveis pela
programação das duas salas de cinema da Fundaj.
Além das disputas no texto e contexto dos filmes, há a corrida anual pelas linhas mais rentáveis do Funcultura Audiovisual.
Cineastas jantando com o ex-governador Eduardo Campos |
A geração da pós-Retomada familiarizou-se com o edital justamente no período em que ele recebeu aumentos sucessivos em seu aporte, os excelentes anos fiscais dos dois mandatos de Eduardo Campos. Sobrinho do cineasta Guel Arraes, Eduardo foi o político que mais viabilizou políticas públicas para o setor do audiovisual, basta observarmos a evolução dos números no aporte do Funcultura Audiovisual: de R$ 900 mil em 2006 para R$ 20,5 milhões atualmente. Até jantar em sua residência para deliberar o futuro do cinema local ocorreu.
Nesse clima, os cineastas da pós-Retomada
surgiram com suas próprias produtoras e com o devido conhecimento
técnico de como funciona o edital. A título de exemplo, vale destacar a
quantidade de filmes que cineastas como Gabriel Mascaro produziram nos
últimos anos – seis longas -, em paralelo ao número dos cineastas da
Retomada, que produzem um filme a cada três anos, em média. A diferença é
significativa.
Com tudo isso, algumas produções da
pós-Retomada se depararam com um dilema (bem comum em se tratando de
produções artísticas) e resolveram enfrentá-lo: como criticar um projeto
político que incentivou minha produção?
Em trânsito, crítica ao neodesenvolvimentismo do PSB-PE |
O projeto era justamente o alavancado pelo neodesenvolvimentismo do PSB, centralmente representado na figura de Eduardo Campos. Ao topar o desafio, os cineastas da pós-Retomada conseguiram capitanear o carisma de certos setores da classe média recifense, sobretudo profissionais liberais, estudantes universitários e ativistas políticos que, somados à luta pelo direito à cidade na esteira do movimento Ocupe Estelita, foram acumulando ainda mais capital simbólico em detrimento dos cineastas da Retomada.
Por sua vez, os integrantes da geração da
Retomada até agora não se posicionaram claramente sobre essa nova agenda
política cada vez mais candente no debate público recifense, seja nos
textos ou contextos de seus filmes. E com isso murcham seus status.
No incipiente mercado pernambucano de bens
simbólicos, especialmente no audiovisual – que detém um edital de
fomento exclusivo -, a queda de braço entre as duas gerações até aqui
trazidas é tema pouco abordado nas discussões sobre o assunto.
A decisão da Fundaj em obliterar a obra de
dois cineastas da Retomada manifesta a possível luta no regaço do
audiovisual local para além do binarismo ideológico das interpretações,
entre pedagogia ou censura, da decisão tomada pelo órgão federal.
Devemos ampliar cada vez mais o debate
porque o que está em jogo não é apenas a sanção devido às posturas
preconceituosas de Lírio Ferreira e Cláudio Assis. Há também uma batalha
a respeito da hegemonia da produção de imagens da cultura pernambucana
em suas diversas manifestações. E isso nos interessa muito – até porque
somos nós quem pagamos a conta.
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