O samba-canção escovado ao contrário
O
filósofo judeu-alemão Walter Benjamin dizia, na sua oitava tese sobre o
conceito de história, que é preciso “escovar a história a contrapelo”.
Referindo-se ao estudioso da cultura que deseja transmiti-la
isentando-se de contar apenas a história dos vencedores. Portanto,
“escovar a história a contrapelo” significa escrever a história daqueles
por ela esquecidos: os perdedores ou os que dela são alijados dos
documentos oficiais, os anônimos e as minorias.
Seguindo essa premissa, talvez de maneira não deliberada, Ruy Castro tece o seu mais recente trabalho: A noite do meu bem (Castro, 2015). O livro é uma espécie de continuação tardia de um trabalho pregresso de Castro, Chega de saudade (1990) Sumariamente, Chega de saudade narra
a história e as histórias da bossa nova com ênfase a partir do
lançamento do disco de Elizeth Cardozo, "Canção do amor demais" [1958],
cujo violonista que acompanha Elizeth no disco é nada mais nada menos
que João Gilberto, e ali está o embrião da “batida bossa nova”, sem
contar que a produção do disco fica a cargo de Tom Jobim assim como as
letras em parceria com Vinicius de Moraes. Já em A noite do meu bem,
Castro conta a história e as histórias do samba-canção – gênero que
povoou a música brasileira entre o samba urbano da década de 1930 até o
início da bossa nova, na transição dos decênios de 1950-1960.
Antes
de adentrarmos na análise do livro, cabem algumas palavras sobre o
recorte deste texto. Deixaremos para outra situação os pormenores em
relação às especificidades do samba-canção e da bossa nova. Aqui,
abordaremos como Castro conseguiu sintetizar uma época do Brasil – 1940 e
1950 – por meio sobretudo do escrutínio das boates de Copacabana com
destaque para o [apesar de boates, os nomes eram evocados com o artigo
masculino] Vogue e o Sacha’s, respectivamente, da era de Getúlio e JK.
Além disso, daremos ênfase aos personagens geralmente esquecidos da
história e que Ruy Castro traz à superfície de sua narrativa sobre o
samba-canção: os batalhadores da noite, ou o “pessoal de apoio” para
utilizarmos uma expressão cara ao sociólogo da arte Howard Becker.
A
noite do meu bem traz um Ruy Castro mais “distanciado”, com um olhar
mais objetivo e conjuntural sobre o samba-canção, diferente da
“afetação” do aficionado por bossa nova presente em Chega de saudades.
Há no mais recente trabalho de Castro uma perspectiva mais, digamos
assim, sociológica. Pois as histórias do samba-canção são contadas num
misto entre cronologia somada as modulações concernentes à evolução dos
meios de produção, e a distribuição e recepção da música produzida no
Rio de Janeiro durante as décadas de 1940 e 1950.
Cassino da Urca na década de 1940 |
Em
1946, o recém empossado presidente Eurico Gaspar Dutra, assina um
decreto-lei que proibia a prática dos cassinos em âmbito nacional.
Estima-se que as jogatinas nos cassinos do País movimentavam 300 milhões
de dólares anuais e empregava mais de 40 mil trabalhadores, a grande
maioria na capital Fluminense. Só no Rio girava 70% dos negócios ligados
aos cassinos pois a cidade abrigava os maiores do Brasil, por exemplo, o
cassino da Urca [p. 19]. Com o fim das atividades toda uma cadeia
produtiva ligada à jogatina viu-se da noite para o dia, sem função.
Castro aponta que demorou mas aos poucos a noite carioca foi absorvendo a
mão de obra desempregada por conta do decreto-lei assinado por Dutra.
Com
o fim dos cassinos, as casas noturnas do Rio de Janeiro, sobretudo as
de Copacabana, tiveram que adaptar-se a espetáculos mais modestos,
sóbrios e intimistas. O fim dos cassinos propiciou o advento das boates e
como estas não podiam competir com a grandiloquência das atrações e
espetáculos dos cassinos, elas tiveram que readequar-se, por forças de
circunstâncias econômicas, a uma nova forma de atrair o público: fazer
da música a grande protagonista da casa. Era o início da era das boates
no Rio, e da música foi formatada neste período: o samba-canção.
Copacabana à altura da Praça do Lido, 1948 |
Para
termos uma ideia da densidade demográfica de Copacabana no final de
década de 1940 basta dizer que se fosse uma cidade independente, o
bairro seria a décima cidade mais populosa do Brasil, com seus mais 130
mil moradores. O Rio tinha 2,4 milhões de habitantes, seguida logo de
perto por São Paulo com 2,2 milhões [p. 124]. Parte significativa do
mercado de bens simbólicos brasileiro localizava-se no Rio. Segundo
Castro: “No Rio ficavam o presidente da República [...] os ministérios,
as autarquias, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, o corpo
diplomático, a presidência dos bancos, a matriz das seguradoras, a
indústria editorial, pelo menos quinze jornais diários e inúmeras
revistas, quase todos de circulação nacional, treze estações de rádio,
as agências de propaganda” [p. 124].
Com
todo o aparato da sua indústria cultural, o Rio tinha as condições
materiais e simbólicas necessárias para a explosão da canção, na forma
do samba-canção, em escala nacional. E não foram apenas os cronistas da
noite os responsáveis pela mitologia dos ídolos da canção, mas também os
sujeitos anônimos trazidos à tona por Castro que ajudaram a sintetizar a
forma como a música era usufruída nas boates, como veremos à frente.
O
público das boates não eram os turistas, políticos e empresários das
províncias, milionários e jogadores profissionais que pululavam o
circuito dos cassinos, havia uma nova “fauna” social que iria militar na
noite das boates de então: altos funcionários públicos, políticos,
artistas, jornalistas, empresários. Esse estrato social não costumava
frequentar a noite carioca, pelo contrário, suas referências eram o
circuito: Nova Iorque - Londres - Paris. E a boate símbolo que
arrebanhou essa nova “fauna” social luxuosa e classuda seria a Vogue,
que fora inaugurada em 1947, em Copacabana, sob a propriedade de Max
Stuckart, “o barão”, um austríaco refugiado de Segunda Guerra que fez
fama e fortuna administrando o salão Meia-Noite do Copacabana Palace
[p.45].
O
Vogue conseguiu galvanizar a elite boêmia do Rio porque tudo nela
recendia a requinte, música quase camarística, boa mesa e ótimo bar. Uma
curiosidade: foi na cozinha do Vogue que surgiu o picadinho de carne –
salvação dos músicos e boêmios das noites cariocas –, popularizou-se a
feijoada com batida de limão e onde foi servido pela primeira vez no
Brasil o estrogonofe, trazido ao Vogue pelo seu chefe de cozinha, o
russo Gregor Berezanski.
Todos
os grandes nomes da canção brasileira à época passaram pelo palco do
Vogue, de Aracy de Almeida – que fez a proeza de cantar Noel Rosa no
Vogue [p. 65] – à Dolores Duran; de Ary Barroso a Dorival Caymmi. Sem
contar as inúmeras atrações internacionais.
O
que chama mais a atenção no relato de Castro sobre o Vogue são as
figuras que nem sempre aparecem nos relatos de um dado período
artístico, ou movimento musical. Eis que o autor de O anjo pornográfico
refere-se nominalmente aos garçons, cumins,
porteiros, leões de chácara, cozinheiros e do mitológico maître do
Vogue, Luiz Freitas Pinto, ou simplesmente: Luiz. Segundo Castro,
orbitava sob o comando de Luiz: “outros quatro maîtres, dez garçons e
dez cumins, mas seus poderes de
vida e de morte pareciam estender-se aos clientes” [p. 47]. Luiz era o
termômetro do Vogue porque seus conhecimentos sobre os hábitos e contas
bancárias da elite carioca vinha de antanho. O maître trabalhava na
noite há mais de dez anos. Com Luiz os proprietários das boates cariocas
descobriram que mais valia um bom maître na mão do que meia dúzia de
clientes chatos em querela com o maître da casa.
Outra
figura lendária das boates de Copacabana e que teve plenos poderes no
Vogue era o porteiro Alfred. De acordo com Castro, os poderes de Alfred
na portaria do Vogue iam de: “Alguém que ele não conhecesse, ou cujo
aspecto desaprovasse, podia ser barrado na porta sob o argumento de que a
casa estava lotada. Foi Adolf quem instituiu, entre os porteiros de
boate do Rio, a tradição do capote grosso até o meio das canelas, cheio
de bolsos internos, e não sem razão: dali saíam cigarros americanos,
isqueiros ingleses e, dizem, frasquinhos de cocaína, estes
comercializados com discrição” [pp 44, 45].
Um
outro nome de peso que botava ordem no salão do Vogue, na ausência de
Luiz, eram o garçom Costa, acompanhado dos também garçons Brono e Ramon
que encarregavam-se sobretudo de acalmar o ânimo dos exaltados que, ao
sabor do uísque e das dores de corno e ciúmes besuntados pelas letras
dos sambas-canção entoados no palco, resolviam trocar tapas no salão [p.
60].
Antônio Maria, Aracy de Almeida e Dorival Caymmi |
O
Vogue era o símbolo do Brasil sob o signo de Vargas na transição do
Estado Novo [1937-1945]; passando pelo governo Dutra, à reassunção de
Vargas ao poder, desta vez democraticamente, em 1950. O Vogue era o Rio
do pós-guerra: eufórico, cosmopolita, enfático e dramático e todos esses
adjetivos estavam na fatura dos sambas-canção. Para termos uma noção da
veemência da vida na noite carioca de então, Dolores Duran teve um
infarto aos 24 anos [p.321], e Sérgio Porto aos 36 [p. 224] devido ao
ritmo frenético de suas vidas. Vários músicos e jornalistas morreram
devido ao ritmo acachapante da noite e também pelo fato de trabalharem
em jornadas duplas e triplas. A lista de necrológicos dessa veemência de
vida vão de Newton Mendonça e Antônio Maria a Dolores Duran.
Golden Room do Copacabana Palace |
Um
dos indicadores do cosmopolitismo do Rio em meados do século XX era o
principal pianista do Vogue, o também austríaco Salomon Rubin, pianista
que já havia rodado meio mundo, com formação virtuosística em Viena.
Solomon Rubin, apelidado à brasileira de “Sacha”, tinha 36 anos em 1948
quando chegou ao Brasil. Foi recrutado por Stuckart e começou a tocar no
Vogue. Dizem que foi Sacha que inaugurou a prática de tocar a canção
predileta do cliente que acabara de adentrar o recinto.
Esses
“coadjuvantes” elencados acima foram basilares para a substituição do
Vogue, enquanto casa noturna central da elite boemia carioca, pela nova
boate sensação da noite de Copacabana, o Sacha’s – “a melhor boate do
Rio” [p. 278]. O Sacha’s foi um empreendimento animado por Carlos
Machado “o rei da noite carioca” e veio à luz após uma “conspiração” de
Machado para tirar o maître Luiz e o pianista Sacha dos domínios do
“barão” Stuckart, do Vogue. E a investida de Machado deu certo.
Linda Baptista, Grande Otelo, Herivelton Martins e Ary Barroso |
Em
23 de dezembro de 1954, o Sacha’s era inaugurado há poucos metros do
Vogue numa concorrência desleal porque o Brasil que anunciava-se então
era o Brasil mais “arejado” da Era JK que apontava-se ao horizonte.
Convém lembrar que Vargas se suicidara em agosto daquele ano e, com ele,
um Brasil mais “sisudo”. Segundo Castro: “Assim como o Vogue fora
Getúlio — esperto, calculista e letal —, o Sacha’s era indiscutivelmente
Juscelino: ágil, sedutor, leviano” [p. 328].
Com
a depuração do modus operandi das boates de Copacabana, Castro traça um
perfil da mudança de costume presente no público que as frequentava. E é
a partir do Sacha’s que o samba-canção começa a decantar-se para uma
“atmosfera” menos entrópica, menos trágica no conteúdo – as letras do
samba-canção falavam geralmente de traição, ciúme, morte, desamparo,
solidão, ingratidão, amores frustrados. No final da década de 1950 o
samba-canção inicia sua abertura – tanto no desenho musical quanto na
fatura das letras – para o mar, o sol, a areia ou para o futuro “o amor,
o sorriso e a flor” que viria a desembocar na bossa nova. Mas aí já é
outra história ou histórias...
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
CASTRO, Ruy. A noite do meu bem: a história e as histórias do samba-canção. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
_______, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da bossa-nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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