Achados arqueológicos contemporâneos I

10.6.16 Cabotino 0 Comentarios


“Na escuridão a luz vermelha do walkman” (Anoiteceu em Porto Alegre)
“Os olhos tristes da fita, rodando no gravador”
(Beradêro)

Na segunda metade da década de 1990, os anos que encerravam o breve século XX, era a época da paranoia das previsões da Mãe Dinah, do rombo da Camada de Ozônio e dos golaços de Romário, eu ganhei de presente de minha mãe: um walkman Aiwa TA144. Na época eu arrotava pra todo mundo: ganhei um walkman da Aiwa! A pronúncia saía assim: a-í-va. Anos depois é que descobri a pronúncia dita correta: ai-wa, lendo o “w” como se fosse “u” e não “v”, à moda inglesa. Mas ninguém me corrigia à época porque quem lá sabia pronunciar o nome daquele troço. Imaginem, eram tempos antediluvianos onde o Google Tradutor era coisa de, pra nós espectadores da Sessão da tarde, Steven Spielberg. Era uma época mais pausada, movida à pilhas Rayovac amarelas, num tempo que não havia tantos gigabytes nem aplicativos, tampouco Romário era um político arrivista.

Walkman Aiwa TA144

Lembro-me da alegria ao abri a caixa do walkman, parecia gol de Túlio Maravilha contra a Argentina num mata-mata de Copa América. Ele era pequeno, cabia direitinho no meu bolso. Comprei oito pilhas da Rayovac e corri pro abraço. De início, ouvia apenas rádio. Além da função AM e FM, o walkman tocava fita K7. Era preciso garimpar umas K7s. Em casa haviam apenas fitas de Mastruz com Leite, Magníficos... e toda a coqueluche do forró estilizado direto do Ceará.

Tinha duas opções para conseguir K7s ao meu gosto musical eminentemente rock n roll: ou comprá-las por meio das lojas do centro: Vinil, Flower, B-side ou gravá-las em casa.

A primeira hipótese era praticamente inviável por conta do preço das K7s, em média R$ 5,00, uma fortuna sobretudo pra um pobre diabo como eu amante de futebol, música e contemplação – a literatura ainda não tinha entrado em minha vida.

A segunda hipótese também era difícil porque o aparelho de som CCE – marca preconceituosamente chamada de “Começou Comprando Errado” – que havia em casa, chamado de “4 em 1”: rádio, K7, vinil e CD tinha um deck de fita muito ruim. As coisas começaram a melhorar quando chegou o aparelho de som “carrossel” da Panasonic modelo: AK77. O nome “carrossel” era por conta da bandeja de 3 CDs que ele comportava em sucessão, girando. Esse aparelho foi o primeiro objeto 100% digital que chegou em casa. Tinha 1600 watts PMPO, que os mais maldosos chamavam de: “Potência Máxima Para Otários”.

Súbito, a coisa começou a suceder-se com mais velocidade. De repente estava com duas caixas de sapatos repletas de fitas K7s acumuladas através das gravações no deck do Panasonic. Comecei a gravar fitas: de um deck para o outro, de um CD para o deck de fita, da programação das rádios Cidade e Transamérica para as fitas. Em resumo, a palavra Rec. começou a fazer parte do meu repertório como se fosse a “puberdade” da relação: arte-experiência-tecnologia que então começava.

As mixtapes que eu gravava tinha um rígido grau de exigência. Não gostava de gravar por cima por conta da queda na qualidade. As músicas não ficavam cortadas por conta do simplesmente: “acabou o lado”. Eu fazia cálculos dos minutos de cada música para que os lados A e B – geralmente com meia hora cada – fossem totalmente preenchidos.

Como todo proprietário de walkman pobretão, eu andava com uma esferográfica sempre a tiracolo para na hora de rebobinar a fita eu sacava-a do deck e girava-a, inserindo a esferográfica e um dos “olhos” da K7. Com isso, economizava a pilha e tinha mais horas de fruição com as mixtapes.



Ouvir uma nova fita K7 ou as novas mixtapes que você gravava ou garimpava nos “rôlos” com amigos dentro do fortíssimo circuito de câmbios das K7s – trocar ou emprestar fitas era sinônimo de grande amizade – era uma experiência iniciática. Eu tinha uma banda de hardcore com mais alguns amigos da escola e fomos socializados, musicalmente, pelo circuito das mixtapes pois CDs e vinis eram caros e a MTV sempre tivera um pendor: mainstream, o que não nos interessava. Portanto, as fitas K7s foram um patrimônio de educação sentimental, via música, de minha geração.

As mercadorias estão prenhes de fetiche. São como fantasmas a assombrar nossas lembranças através da implacável efemeridade. A obsolescência inerente à produção tecnológica leva de roldão muitos objetos que hoje se encontram no paradoxal: achados arqueológicos contemporâneos. Como, por exemplo: o walkman. Meu Aiwa TA144 não está no “ferro velho” da memória como mais um objeto da nostalgia romântica do “tempo bom que não volta mais”. Meu Aiwa está comigo e sempre estará porque o modo que me relaciono com a música hoje eu formatei-o com o auxílio dele. Assim como certas pessoas, a ausência de certos objetos nos deixa coisados.

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