Notas de verão sobre impressões de primavera [Santiago] IV

15.11.13 Foi Hoje! 0 Comentarios


POLÍTICA

O Chile pós Allende (não irei esmiuçar as implicações que levaram ao golpe militar chileno em 1973, para tanto, sugiro o documentário dirigido por P. Guzman, A batalha do Chile. Apenas vou tentar trazer alguns pontos de permanência e ausência do legado militar no país) se transformou em um verdadeiro laboratório, na América Latina, para experiências neoliberais. Não é à toa que FHC é cultuado no país e, acredito, mais como arauto do Consenso de Washington do que como o Príncipe dos Sociólogo. Há até praça inaugurada (1996) por ele próximo a Av. Brasil, no centro de Santiago, em homenagem a Tom Jobim (a Bossa Nova é a música por excelência do Brasil no Chile, algo que falei na seção sobre o Povo chileno).

Apesar dos últimos presidentes terem como plataforma ideológica o socialismo, R. Lagos e M. Bachellet (que vai tentar a reeleição em novembro), os efeitos da ditadura militar no Chile são visíveis principalmente na esfera econômica. Há um enxugamento do Estado que, para um brasileiro que conheceu pela primeira vez uma economia predominantemente neoliberal, foi algo marcante. Bens e serviços públicos estão entregues, em grande medida, às leis do mercado.

Quando fui conhecer a praia de Algarrobo, para visitar a casa de um amigo que conheci em Santiago, tentei apanhar o ônibus intermunicipal no terminal rodoviário da Estação Universidade do Chile. No terminal, tive vontade de ir ao banheiro e, para a minha surpresa, tive que pagar 250 pesos, algo em torno de um real e pouco para ter acesso ao serviço. Não bastasse o bilhete de metrô (Bip) que custa 610 pesos no horário do rush que tive que pegar para chegar ao terminal. Pois é, o preço dos bens e serviços em Santiago variam de acordo com o horário. Não estranhe pagar 1300 pesos em uma cerveja e após as 21h o preço da mesma subir para 1500 pesos, essa prática é moeda corrente por lá.

O Chile atual está menos nerudiano e mais bolañiano.

Conversando com uma professora (fã de Fagner) de surf, nas águas gélidas do pacífico, que conheci em Santiago por ocasião de uma festa no 19º andar de um apartamento à noite onde se via toda a Santiago em seu esplendor de mercúrio. Ela me falou que se você não estudar em uma escola boa (leia-se privada) na infância, você não tem chance de cursar uma universidade boa (leia-se novamente, privada). Fiquei alarmado, mas o baque maior veio logo em seguida, disse-me também que comida em Santiago é artigo de luxo. Depois ela me localizou, da sacada do apartamento, a disposição espacial/econômica da cidade de Santiago, o leste é onde concentra-se os ricos da cidade, a classe média fica ao norte e oeste (mais acentuadamente) e a classe baixa ao sul. Foi uma boa aula de surf.

Um dado interessante é que cheguei à Santiago por ocasião do 40º aniversário do golpe militar de 11 de setembro de 1973 (curioso que para Washington o único 11 de setembro que existe é de 2001, e o de destituir um presidente democraticamente eleito não conta, é ideologia). E também estava comemorando-se as festividades da Fiestas Pátrias (ou o Dezoito) algo parecido como a semana da Pátria, comemorado especificamente, nos dias 18 e 19 de setembro.

Ao chegar ao país, estranhei a enorme concentração de bandeiras chilenas no caminho do aeroporto, desde favelas até a Vicuña Mackena, rua onde fiquei instalado em um hostel no centro de Santiago. Daí perguntei-me, de onde vem este patriotismo? Talvez venha de uma estratégia, escolhida pelo povo chileno, de esquecer o que tivera acontecido há quarenta anos. Cada povo escolhe sua maneira de esquecer ou purgar seus males políticos, o nosso ainda está indelével por conta dos arquivos que não foram completamente abertos e que talvez tenha sido detonado (a soma dos “resíduos” na acepção de H. Lefébvre) nas jornadas de junho deste ano. No caso chileno, houve a tentativa de julgamento de A. Pinochet (em 2005, não efetivado devido à morte do facínora um ano depois) e as ruas que foram tomadas recentemente, em grande medida, em prol da gratuidade da educação superior.

Andando pela zona oeste da capital chilena percebemos como a cidade passou por um processo de Manhattização, principalmente no empreendimento imobiliário/financeiro conhecido como: Costanera Center. Uma construção faraónica incrustada na Comuna de Providence e que é um complexo comercial que congrega o maior edifício da América Latina, próximo à estação do metrô de Tobalaba. Um dado curioso é que, cada bairro de Santiago, conhecido como Comuna, é autônomo em relação ao poder municipal, ou seja, os bairros mais ricos coletam mais impostos que são convertidos em bens e serviços no próprio bairro. Essa prática administrativa descentralizada reproduz a própria estrutura financeira da cidade, quem possui mais condições continua assim, que possui menos...

Suscitei em uma das seções anteriores a biopolítica que perpassa a austeridade andina. Esse fato fica claro quando andamos pelo bairro boêmio da Bela Vista, ele é uma sinédoque do que há em toda Santiago, não se pode beber na rua, salvo se o bar tiver cadeiras e mesas nas calçadas, excetuando isso, não. O que me assustou mais foi à relação estabelecida pelos carabineiros (policiais) com outros povos andinos, principalmente os bolivianos e peruanos, eles são truculentos e pouco tolerantes em relação a estas duas populações. Um exemplo, se eles virem um deles (detectados pelo biótipo andino) bebendo na rua, provavelmente, o enquadrará. Se for brasileiro, eles relativizam, dão uma advertência. Talvez este tratamento diferenciado conosco não seja oriundo de uma deferência com o jeito entretenido (bonachão) de nós brasileiros, mas sim a amplitude política que nós adquirimos no cenário internacional nos últimos anos. Quando a desigualdade é manifesta na enunciação, é fundamental ter um bom serviço diplomático lhe respaldando, os ingleses praticam isso há séculos.

Ainda em relação ao tema da biopolítica e também ainda sobre o álcool, percebi um dia em que caminhava pela Praça Brasil em busca de algum restaurante que vendesse comida brasileira, pois o imperativo do hábito não reconhece nacionalidades, me deparei no horário com vários estudantes, crianças, casais etc. espalhados pela praça. As mulheres chilenas são muito bonitas e as colegiais lembram personagens dos HQs Hentais – saia de prega, meia arrastão, penteados sóbrios. Acredito que a austeridade andina recaiam mais sobre elas (como de costume) do que nos meninos. Vi alguns garotos no referido logradouro, sacando umas cervejas da mochila e fumando – Santiago é uma cidade de muitos tabagistas. As colegiais também fumavam e com uma destreza típica de anos de tabagismo. Comecei a perceber que há várias brechas dentro da política “oficial” da austeridade inseridas no cotidiano do chileno, ele, assim como nós, aprendeu as estratégias para uma vida mais leve em meio à atmosfera neoliberal que paira sobre todos, onde as regras do mercado que solapam, em grande parte, as do Estado são muitas vezes mais fóbicas do que as do Leviatã.

As ingerências do mercado só não são mais sufocantes para o chileno porque ele é um povo que ama a rua e não será nenhum Consenso de Washington que roubará isso deles.

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por Renato K. Silva - Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN    
           
           


            

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