Notas de verão sobre impressões de primavera [Santiago] IV
POLÍTICA
O Chile pós Allende (não irei esmiuçar
as implicações que levaram ao golpe militar chileno em 1973, para tanto, sugiro
o documentário dirigido por P. Guzman, A
batalha do Chile. Apenas vou tentar trazer alguns pontos de permanência e
ausência do legado militar no país) se transformou em um verdadeiro laboratório,
na América Latina, para experiências neoliberais. Não é à toa que FHC é
cultuado no país e, acredito, mais como arauto do Consenso de Washington do que
como o Príncipe dos Sociólogo. Há até
praça inaugurada (1996) por ele próximo a Av. Brasil, no centro de Santiago, em
homenagem a Tom Jobim (a Bossa Nova é a música por excelência do Brasil no
Chile, algo que falei na seção sobre o Povo
chileno).
Apesar dos últimos presidentes terem
como plataforma ideológica o socialismo, R. Lagos e M. Bachellet (que vai
tentar a reeleição em novembro), os efeitos da ditadura militar no Chile são
visíveis principalmente na esfera econômica. Há um enxugamento do Estado que,
para um brasileiro que conheceu pela primeira vez uma economia
predominantemente neoliberal, foi algo marcante. Bens e serviços públicos estão
entregues, em grande medida, às leis do mercado.
Quando fui conhecer a praia de Algarrobo,
para visitar a casa de um amigo que conheci em Santiago, tentei apanhar o
ônibus intermunicipal no terminal rodoviário da Estação Universidade do Chile.
No terminal, tive vontade de ir ao banheiro e, para a minha surpresa, tive que
pagar 250 pesos, algo em torno de um real e pouco para ter acesso ao serviço.
Não bastasse o bilhete de metrô (Bip) que custa 610 pesos no horário do rush que tive que pegar para chegar ao
terminal. Pois é, o preço dos bens e serviços em Santiago variam de acordo com
o horário. Não estranhe pagar 1300 pesos em uma cerveja e após as 21h o preço
da mesma subir para 1500 pesos, essa prática é moeda corrente por lá.
O Chile atual está menos nerudiano e
mais bolañiano.
Conversando com uma professora (fã de Fagner)
de surf, nas águas gélidas do pacífico, que conheci em Santiago por ocasião de
uma festa no 19º andar de um apartamento à noite onde se via toda a Santiago em
seu esplendor de mercúrio. Ela me falou que se você não estudar em uma escola
boa (leia-se privada) na infância, você não tem chance de cursar uma
universidade boa (leia-se novamente, privada). Fiquei alarmado, mas o baque
maior veio logo em seguida, disse-me também que comida em Santiago é artigo de
luxo. Depois ela me localizou, da sacada do apartamento, a disposição
espacial/econômica da cidade de Santiago, o leste é onde concentra-se os ricos
da cidade, a classe média fica ao norte e oeste (mais acentuadamente) e a
classe baixa ao sul. Foi uma boa aula de surf.
Um dado interessante é que cheguei à Santiago
por ocasião do 40º aniversário do golpe militar de 11 de setembro de 1973
(curioso que para Washington o único 11 de setembro que existe é de 2001, e o de
destituir um presidente democraticamente eleito não conta, é ideologia). E
também estava comemorando-se as festividades da Fiestas Pátrias (ou o Dezoito)
algo parecido como a semana da Pátria, comemorado especificamente, nos dias 18
e 19 de setembro.
Ao chegar ao país, estranhei a enorme
concentração de bandeiras chilenas no caminho do aeroporto, desde favelas até a
Vicuña Mackena, rua onde fiquei instalado em um hostel no centro de Santiago.
Daí perguntei-me, de onde vem este patriotismo? Talvez venha de uma estratégia,
escolhida pelo povo chileno, de esquecer o que tivera acontecido há quarenta
anos. Cada povo escolhe sua maneira de esquecer ou purgar seus males políticos,
o nosso ainda está indelével por conta dos arquivos que não foram completamente
abertos e que talvez tenha sido detonado (a soma dos “resíduos” na acepção de
H. Lefébvre) nas jornadas de junho deste ano. No caso chileno, houve a
tentativa de julgamento de A. Pinochet (em 2005, não efetivado devido à morte
do facínora um ano depois) e as ruas que foram tomadas recentemente, em grande
medida, em prol da gratuidade da educação superior.
Andando pela zona oeste da capital
chilena percebemos como a cidade passou por um processo de Manhattização, principalmente no empreendimento
imobiliário/financeiro conhecido como: Costanera Center. Uma construção
faraónica incrustada na Comuna de Providence e que é um complexo comercial que
congrega o maior edifício da América Latina, próximo à estação do metrô de
Tobalaba. Um dado curioso é que, cada bairro de Santiago, conhecido como
Comuna, é autônomo em relação ao poder municipal, ou seja, os bairros mais
ricos coletam mais impostos que são convertidos em bens e serviços no próprio
bairro. Essa prática administrativa descentralizada reproduz a própria
estrutura financeira da cidade, quem possui mais condições continua assim, que
possui menos...
Suscitei em uma das seções anteriores
a biopolítica que perpassa a austeridade
andina. Esse fato fica claro quando andamos pelo bairro boêmio da Bela
Vista, ele é uma sinédoque do que há em toda Santiago, não se pode beber na
rua, salvo se o bar tiver cadeiras e mesas nas calçadas, excetuando isso, não.
O que me assustou mais foi à relação estabelecida pelos carabineiros
(policiais) com outros povos andinos, principalmente os bolivianos e peruanos,
eles são truculentos e pouco tolerantes em relação a estas duas populações. Um
exemplo, se eles virem um deles (detectados pelo biótipo andino) bebendo na
rua, provavelmente, o enquadrará. Se for brasileiro, eles relativizam, dão uma
advertência. Talvez este tratamento diferenciado conosco não seja oriundo de
uma deferência com o jeito entretenido (bonachão)
de nós brasileiros, mas sim a amplitude política que nós adquirimos no cenário
internacional nos últimos anos. Quando a desigualdade é manifesta na
enunciação, é fundamental ter um bom serviço diplomático lhe respaldando, os
ingleses praticam isso há séculos.
Ainda em relação ao tema da
biopolítica e também ainda sobre o álcool, percebi um dia em que caminhava pela
Praça Brasil em busca de algum restaurante que vendesse comida brasileira, pois
o imperativo do hábito não reconhece nacionalidades, me deparei no horário com
vários estudantes, crianças, casais etc. espalhados pela praça. As mulheres
chilenas são muito bonitas e as colegiais lembram personagens dos HQs Hentais –
saia de prega, meia arrastão, penteados sóbrios. Acredito que a austeridade andina recaiam mais sobre
elas (como de costume) do que nos meninos. Vi alguns garotos no referido
logradouro, sacando umas cervejas da mochila e fumando – Santiago é uma cidade
de muitos tabagistas. As colegiais também fumavam e com uma destreza típica de
anos de tabagismo. Comecei a perceber que há várias brechas dentro da política
“oficial” da austeridade inseridas no
cotidiano do chileno, ele, assim como nós, aprendeu as estratégias para uma
vida mais leve em meio à atmosfera neoliberal que paira sobre todos, onde as
regras do mercado que solapam, em grande parte, as do Estado são muitas vezes
mais fóbicas do que as do Leviatã.
As ingerências do mercado só não são
mais sufocantes para o chileno porque ele é um povo que ama a rua e não será
nenhum Consenso de Washington que roubará isso deles.
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por Renato K. Silva - Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN
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por Renato K. Silva - Pós-graduando em Ciências Sociais pela UFRN
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