Recife: capital do "serrote"
Para
quem não é da capital pernambucana e não conhece a sintaxe das ruas, “serrote”
significa aquele sujeito que “serra” o que você tem. Que quer dividir tudo o
que você saca do bolso ou traz na mochila ou na sacola. É o famoso pidão. É de
bom-tom esclarecer logo uma coisa: o “serrote” não é o mendigo pedinte por questões
óbvias, o mendigo é mendigo e tudo que ele pede é salvo-conduto para
sobreviver. O “serrote” é uma categoria particular – ele padece do equilíbrio entre
corpo e alma, isto é, habita nele uma sovinice entre o desejo e a condição
financeira. Em uma palavra: o “serrote” é um espírito de porco.
Só
uma cidade que cria uma taxonomia particular para os pedintes espíritos de
porco – os “serrotes” – é capaz de refletir esse estrato particular porque
sofre e, paradoxalmente, dá as condições necessárias para esse grupo existir e
se reproduzir. Eu já andei por vários lugares do Brasil e até do mundo, mas
nenhum se compara a Recife no tocante à perpetuação do “serrote”. Vamos lá.
Como
não tenho carro, moto, bicicleta, skate nem carrinho de rolimã meu meio de
transporte em Recife é sobretudo ônibus, metrô e o famoso “expresso canelinha”:
a pé. E como costumo bater muito essa cidade porque minha namorada mora num
região antípoda a minha, eu no extremo da Zona Sul; ela quase no extremo da
Zona Norte, geralmente fico à mercê do ataque inescrupuloso dos “serrotes”.
Some-se a isso, talvez, o fato de pertencer a uma zona amorfa do status
sócio-étnico-econômico brasileiro: sou branco, tabagista e trajo roupas sóbrias,
portanto, seguramente, os “serrotes” pensam que tenho dinheiro sobrando – tsc,
tsc, tsc além de espíritos de porco eles não conseguem fazer uma leitura mínima
da minha performance corporal precária.
Irei
agora traçar um pouco do perfil do “serrote” recifense. Estes são geralmente
homens jovens: tabagistas, metidos a espertos e que costumam usar óleo de
Peroba como renew em suas caras de
pau.
Agora
irei narrar algumas situações em que fui alvejado à queima-roupa pelo ataque cínico
e desbragado dos “serrotes”. Uma noite de domingo após o clássico entre Sport x
Náutico do ano corrente, desci na Av. Recife para esperar o ônibus da linha
132. Acendi um cigarro enquanto o coletivo não vinha. As empresas de ônibus
seguramente tem contrato com a Souza Cruz porque é absurda (além de ser sinal
de má-educação) a quantidade de guimbas de cigarro que há nas paradas de ônibus
– esperar é a maior fissura para o fumante. Súbito brota do nada um “serrote” –
eles são criaturas de abiogênese, surgem do nada! – e me pede um cigarro.
Detalhe: ele estava fumando. Disse-lhe: “E tu não estás fumando?”. Ele
respondeu-me despudoradamente: “Pô, isso aqui é um góia que eu peguei de um
cara ali”. Mais cara de madeira do que isso só que vou contar agora no próximo
parágrafo.
Estava
eu esperando o ônibus da linha 149 à noite, véspera de feriado de Tiradentes,
quando decido acender um cigarro. De chofre! Não é pilhéria, ejetou ou caiu de paraquedas
do nada um “serrote”. Pediu-me um cigarro. Fitei-o com o olhar mais furibundo
que tenho e ia tirando um cigarro para dar-lhe, considerei porque ele chegou
acompanhado de um cara que estudou comigo anos atrás e inclusive é meu homônimo.
Daí o “serrote” filho-da-puta-mente perguntou-me: “Qual o cigarro que tu fuma,
fio?”. Olhei para cara dele e saí-me de lado bufando fumaça e ódio. A vontade
que deu era desculhambá-lo. Ceguei de raiva mas não valia a pena estragar minha
véspera de feriado.
Finalmente
irei narrar três episódios similares que aconteceram comigo em menos de um mês.
Minha namorada é testemunha de um deles. É só perguntar a ela. Estava andando
pela rua Henrique Dias, no Derby, saboreando meu king size de filtro amarelo que ia pela metade. Quando súbito surge
por trás de uma lufada de vento o “serrote” da vez. Era um “correria” banguela que
levanta um troco limpando o vidro dos carros blindados até os dentes que
trafegam pela Av. Agamenon Magalhães. Ele pediu-me um cigarro. Falei-lhe: “Jogador,
esse é o último”. Mas o “serrote” é irredutível: “Então, rola esses tragos pra
mim”, açodou-me o pedido. Dei mais duas tragadas de com força e entreguei-lhe o
góia. Achando pouco, o “serrote” ainda pediu um gole da minha água mineral que
levo sempre no cós da mochila. Olhei-o meio atônito e como não se deve negar
água, entreguei-lhe dizendo: “Pode beber tudo, mago”.
Os
outros dois episódios ocorreram na Av. Rosa e Silva e na Estrada da Bomba do
Hemetério, respectivamente. Ambas são variações da história que contei no
parágrafo anterior. Com a variação de que na Rosa e Silva fui abordado por uma “serrote”
e na Bomba por um “serrote” pivete. Depois desses episódios comecei a refletir sobre
essa categoria e comecei a indagar também porque sou inúmeras vezes vítima dos “serrotes”.
Por ora ficarei por aqui, em breve se a preguiça e ou a ninfa musa das
platitudes deixarem, irei trazer mais algumas crônicas sobre a, digamos assim,
sociologia do “serrote”.
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Créditos das tirinhas: Google Imagens.
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